o texto mais longo de sempre que precisava de escrever

Esta foi a semana em que acordei com lágrimas nos olhos por um sonho que tive. Os meus sonhos são maioritariamente parvos, daqueles têm piada quando acordo mas que passados cinco minutos já me esqueci. Mas este... foi triste pela pessoa com quem sonhei e pelo sonho em si.

Há uns quatro anos afastei-me irremediavelmente de um amigo próximo, do meu melhor amigo. Não foi daqueles afastamentos naturais, porque as pessoas já não têm tanto tempo para estar juntas ou mudaram e já não têm tanto em comum. O meu foi um afastamento porque teve mesmo que ser assim, não me sentia segura, era pressionada constantemente e mais importante que isso, estava a fechar os olhos para algo que acontecia há anos e que nunca quis ver.

Conheci o meu amigo no 5º ano. Foi da minha turma até ao 9º, sempre foi meu amigo desde os primeiros dias de escola e era aquele miúdo excêntrico que contrastava com todos nós por ser nórdico, loiro, de pele clara e gostava de coisas que a maior parte de nós não ligava e nem sabia que existia. Lembro-me que levava sempre sandes de um pão super esquisito com coisas dentro ainda mais esquisitas, o que pode não parecer diferente, mas para nós, miúdos da terra que almoçavam sempre na cantina ou no bar, trazer o almoço não era comum. Mas lá por ser diferente em tantas outras coisas de nós, não era por isso que era colocado de lado ou visto como um weirdo. Pelo contrário, toda a gente se estava a lixar para a sua excentricidade e aceitava-o assim. Durante todo o tempo de escola sempre foi "one of the boys", gostava de jogar futebol e passava o tempo com eles. Mas na viagem de autocarro para casa vinha sempre connosco, raparigas. Era aquele amigo que dava conselhos, ajudava no que fosse preciso e participava nas nossas conversas. Hoje conheço muitos rapazes que o fazem, mas na altura era só ele que era assim. O resto achava que as miúdas eram apenas namoradas, e não amigas. E, não sei explicar de outra maneira, mas pelo menos para mim, era o rapaz em que eu não tinha qualquer interesse para além de amizade. E mesmo essa amizade era silenciosa, das que não damos conta no dia-a-dia mas de quem iríamos sentir uma falta enorme se algum dia não estivesse lá.

Andámos juntos cinco anos na escola e eu sei que ele gostou de mim nos últimos três. Nunca me disse mas mostrava-o de formas subtis. Todos os anos no dia dos namorados oferecia uma rosa a cada uma de nós, e minha era a única que tinha um papel a dizer "com amor". Por isso eu sabia, os meus colegas sabiam e diziam-me, mas eu quis ignorar porque não estava interessada e porque sinceramente, era (e de certa forma ainda sou) uma pita que não lidava com as coisas e achava que se não se desse importância, que a coisa incómoda acabava por desaparecer. Por isso, amigos como sempre durante anos e anos. Até que no Verão antes de me mudar para a cidade ele se chateou comigo por uma coisa idiota, pelo menos para mim, e deixámos de nos falar. Ou melhor, ele deixou de falar comigo e eu fui uma cobardolas com medo de ouvir umas quantas verdades e não pedi desculpa nem fui atrás. E assim se passou um ano inteiro até que um outro amigo meu, sabendo tudo isto, foi falar com ele e resolveu as coisas por mim. Long story short voltámos a ser amigos.

Quando voltámos a falar fiquei chocada com o quanto ele tinha mudado. No ano que não nos falámos ele também mudou de escola e, embora sempre tenha sido parecido com o Kurt Cobain fisicamente, a vida dele também estava a aproximar-se do seu sósia. As histórias dele eram sempre do mais louco que já tinha ouvido e para mim, a sempre-em-casa que nunca tinha fumado nem bebia, o que ele fazia estava um bocado acima da vida louca que eu imaginava ser possível ter. A personalidade dele também estava diferente. No fundo era o mesmo miúdo, um bocado mais cabeça no ar e inconsequente, mas ainda assim, era o meu amigo. E eu estava contente por o ter de volta e por ele próprio me querer a mim de volta porque no ano em que estivemos afastados tinha sentido a sua falta. Sei que muita gente diz isto, mas ele estava presente incondicionalmente. Por muita treta que fizesse, mesmo quando estava triste, quando não tinha tempo, estivesse na minha vida quem estivesse, ele era o meu melhor amigo. Devia ser a amizade mais estranha de sempre pois as nossas vidas não podiam ser mais diferentes. Ainda assim, não havia um dia que não falássemos. Nas férias ficávamos todos os dias a falar ao telefone até às tantas da manhã. Não estávamos juntos muitas vezes porque vivíamos longe, ainda assim íamos beber café aos domingos de manhã quando eu voltava à terra. E para uma pessoa como o meu amigo que só se levantava à tarde da cama, vejo agora o esforço que ele não deveria fazer. Parecia ser a melhor amizade de sempre, só que por de trás de toda a sinceridade e tudo mais havia um grande elefante azul do qual eu evitava falar e tentava reprimir a todo o custo: o meu amigo ainda gostava de mim. E a dança era mais ou menos assim: amigos até que ele dizia que sentia alguma coisa e que devíamos "tentar ver", seguido por mim a afastar-me e erguer paredes altas à minha volta com uma janelinha no cimo para espreitar. E esta última analogia até foi ele um dia que me disse. Eu nunca senti mais do que amizade. Ao contrário de muitas outras burrices que fiz, nunca lhe dei esperanças e não disse que íamos tentar. Porém, já estive do lado dele e sei que é difícil desistir de algo de que gostamos. Quando, para ajudar à festa, a outra pessoa até gosta de nós e está tão próxima, só não da maneira que nós queríamos. Percebo que ele tentasse. Mas eu não ia mentir a mim mesma nem anular-me só para fazer o meu amigo feliz. Não ia tentar uma coisa que nunca senti. E o que acontecia sempre depois de uma tentativa era um afastamento entre nós porque eu tratava o que ele sentia "a mais" por mim como uma constipação, passa um tempo e melhora. Ele não ver esse afastamento reprimia o que sentia como se tivesse realmente curado e voltávamos a estar próximos.

Sobre a vida do meu amigo em si, eu nunca o julguei. Ele contava-me tudo o que fazia e eu só lhe dizia que devia ter cuidado. Uma vez disse-lhe que devia deixar de fumar porque lhe fazia mal e ele deixou. Por uns tempos pelo menos. Sobre bebedeiras e afins, achava piada às histórias que ele me contava e pensava que durante a adolescência somos todos um bocado parvos, por isso até era normal, depois ele atinava. Não eram coisas me via a fazer, experimentar talvez, mas fazer aquilo diariamente não. Ele dizia-me que a primeira vez que eu fumasse não iria ser com ele porque não queria ter essa responsabilidade. Muito ao género de "eu faço isto, mas é muito hardcore e faz mal, por isso se o fizeres tu é que sabes mas não vou ser eu a dar-te um cigarro". Mais tarde percebi que isso é coisa bonita de se dizer, mas que na hora é o primeiro a estender qualquer coisa. E foi isso que lixou tudo. Eu só conhecia a parte boa, dos telefonemas, cafés ao domingo, festas na terrinha... Nunca tinha vivido o outro lado das histórias, o de ele ser um idiota quando estava sobre a influência de alguma coisa, do querer lixar-se a ele mesmo porque sim, porque é fixe estar sobre efeito de alguma coisa a experimentar cenas. Bastou uma semana para ver o quão assustador pode ser. Uma semana para eu própria deixar de romancear sobre aquela vida que ele levava e para não querer aquilo para mim. Nem experimentar sequer. E embora só me tenha afastado definitivamente meses depois, foi aí que tive o primeiro abre olhos de que o meu amigo já não era o puto de 9º ano que corria atrás de uma bola nos intervalos e se sentava ao meu lado no autocarro todas as manhãs e todas as tarde.

Eu acho que não se deve obrigar a alguém para mudar por nós, até porque não há uma maneira certa de viver. Ninguém me garante que se fizer tudo by the book que vou ter uma vidinha cor-de-rosa e não vou acabar por magoar alguém ou a mim mesma. Por isso, e embora já não achasse piada nenhuma ao que ele fazia, continuavam a ser as escolhas dele. Se ele se sentia bem com isso, o que eu poderia fazer era afastar-me dessa parte da vida dele e continuar a ver só o lado bom, do amigo, dos cafés ao domingo. O que aconteceu foi que a outra parte da vida dele era tudo o que ele conhecia agora. Era tudo o que ele falava. E com a minha entrada na faculdade cada vez tinha menos tempo para ficar ao telefone horas e horas e mais ele exigia para que falássemos, mais reclamava atenção e sinceramente, menos eu achava que a devia dar. Amuava e eu ia atrás, explicar-lhe que as coisas tinham mudado e que apesar de tudo, ainda o estimava pelo amigo que era. E por fim, num desses amuos que ele teve, afastei-me.

Desde essa altura enviou-me uma mensagem meses depois, todo bem-disposto como se tivéssemos falado no dia anterior. Uns dois anos depois, enviou-me outra com um número que eu não conhecia, do género "adivinha quem sou eu". E no ano passado, num jantar de turma que se organizou, sentou-me mesmo à minha frente e enviou-me uma mensagem a meio do jantar que dizia apenas "pazes?". Pazes. Três anos depois e era isto que tínhamos para dizer um ao outro. Mas sinceramente, três anos (há um ano atrás) fizeram com que eu não quisesse saber. Gostava de justificar as minhas razões, dizer-lhe porquê. Mas ao contrário das relações, quando se quer romper com uma amizade porque já não faz sentido, já faz mais mal que bem, diz-se o quê? E depois, tenta-se construir tudo de novo? A outra pessoa em quatro anos mudou outra vez? Se num ano mudou para o que eu vi, o que lhe fizeram quatro? Pelo que vi nesse jantar pareceu-me uma pessoa melhor. Estava com muito melhor aspecto e parecia feliz. Do que foi falando com outras pessoas, porque nunca falámos directamente, tinha finalmente atinado e estava a estudar noutro lugar. Fiquei feliz por ele, mas a mossa de anos anteriores, o meu orgulho e medo de conversas incómodas fez com que não falasse com ele, nem lhe respondesse à mensagem. Passou mais um ano sobre isso e às vezes penso que deveria ter falado, apenas para fechar o assunto e sermos aquelas pessoas que se cruzam e trocam um sorriso pelas boas memórias, sabendo que tudo o resto está partido e não há nada a fazer. Só que sei que se tivesse falado com ele era provável que voltássemos a ser amigos porque já foi assim da outra vez. E eu não quero voltar a sentir a ansiedade e pressão que sentia, nem a preocupação pelas semanas em que não sabia se ele estava ou não bem porque nem ele próprio sabia o que andava a fazer e não respondia às mensagens porque perdia o telemóvel pelo menos uma vez por mês.

No meu sonho eu tinha ido visitá-lo a uma casa onde ele estava com a namorada. E no sonho falei com ele, expliquei-lhe que não podemos ser amigos porque ele se tinha tornado numa pessoa de quem não gosto. E disse-lhe que às tantas não sabia se o que nos tinha unido era realmente a amizade ou o facto de ele ter gostado de mim. Perguntei-lhe se tinha deixado as merdas todas onde estava metido. No sonho disse-me que não, e que conseguiria deixar. E que compreendia as minhas razões. E depois acordei com um nó no peito e a chorar. Foi um sonho tão estupido que veio do nada. Mas ao mesmo tempo, era o que eu lhe queria ter dito. Sei que o tempo para o fazer já passou e não quero voltar a desenterrar tudo isto, até porque estou bem assim e tudo isto tem um espaço arrumado na minha cabeça. Acho que ele também está melhor assim. Mas se me perguntassem qual é a pior parte de crescer eu diria que é isto mesmo. Tentar encaixar como é que no mesmo corpo, com o mesmo andar, mesma voz, expressão e riso vivem duas pessoas diferentes de quem tenho memória: uma que conhecia bem e que quem gostava e outra, cujas atitudes e reações já não reconheço e que não me diz nada.

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